Experiência nº 1

01.08.17

Trabalho de corpo

  1. Não fazer, só ser (Posturas de Yoga) trazer o corpo para uma condição de conforto e disponibilidade de fazer presença.

Dinâmica de desenhar junto

Grande folha no chão, pilots e orientações da Beá. Atividade lúdica de usar o espaço e ocupá-lo com movimentos e cores.
Conversas sobre a experiência.

 

 

1. O ETERNO RETORNO DO ENCONTRO

Depoimento
Originalmente publicada em A outra margem do Ocidente,
(org. Adauto Novaes, Funarte/Cia. Das Letras, 1999)

(…)
O território tradicional do meu povo vai do litoral do Espírito Santo até entrar nas serras mineiras, entre o vale do Rio Doce e São Mateus. Mesmo que hoje só tenhamos uma reserva pequena no médio Rio Doce, quando penso no território do meu povo, não penso naquela reserva de 4 mil hectares, mas num território onde a nossa história, os contos e as narrativas do meu povo vão acendendo luzes nas montanhas, nos vales, nomeando os lugares e identificando na nossa herança ancestral o fundamento da nossa tradição. Esse fundamento da tradição, assim como o tempo do contato, não é um mandamento ou uma lei que a gente segue, nos reportando ao passado, ele é vivo como é viva a cultura, ele é vivo como é dinâmica e viva qualquer sociedade humana. É isso que nos dá a possibilidade de sermos contemporâneos uns dos outros, quando algumas das nossas famílias ainda acendem o fogo friccionando uma varinha no terreiro da casa ou dentro de casa, ou um caçador se deslocando na floresta e fazendo o seu fogo assim – autossustentável.

Essa simultaneidade que temos tido a oportunidade de viver é uma riqueza muito especial e um dos maiores tesouros que temos. O professor Darcy Ribeiro costumava dizer que a maior herança que o Brasil recebeu dos índios não foi propriamente o território, mas a experiência em sociedade, a nossa engenharia social. A capacidade de viver junto sem se matar, reconhecendo a nossa territorialidade um do outro como elemento fundador da sua identidade, da sua cultura e do seu sentido de humanidade. Esse entendimento de que somos povos, que temos esse patrimônio e essa riqueza, tem sido o principal motivo e a principal razão de eu me dedicar cada vez mais a conhecer a minha cultura, conhecer a tradição do meu povo e reconhecer também, na diversidade das nossas culturas, o que ilumina a cada época o nosso horizonte e a nossa capacidade como sociedade humana de ir melhorando; pois se tem uma coisa que todo mundo quer é melhorar. Os índios, os brancos, os negros e todas as cores de gente e culturas no mundo anseiam.

 

2.  O RIO DA MEMÓRIA

Entrevista
Originalmente publicada no site Museu da Pessoa, em 14 de março de 2008.

E quando você nasceu?
Eu nasci em 1953. Eu nasci no século passado, nessa região que é um córrego. O pessoal da minha região atribuía a falar o nome do córrego, do rio mais perto para dizer de onde era. Ah, se você estava na margem do rio você falava que era do rio tal, se você estava na cabeceira do rio você dava o nome do córrego, que vinha da cabeceira do rio. Eu nasci num córrego que chama córrego do Itabirinha, ele é da bacia do Rio Doce, ele vai jogar a água desde lá no Rio Doce e o Rio doce depois leva todas as nossas ideias, nossos pedidos, lembranças, lamentações, e despeja lá no mar.

E você se lembra de quando era pequenininho, você podia descrever como era o lugar que você morava? Com quem você morava?
Olha, a minha vida de menino foi cheia de aventura, porque eu estava no meio de mais de seis irmãos. E no meio de mais de uns 50 primos. E no meio de um monte de tias. Esses camaradas todos, esta gente toda, era como nossos parentes mais íntimos. A gente estava tudo perto um do outro, então, a gente não tinha lugar para dormir. Você podia dormir em qualquer lugar, se anoitecesse você podia dormir na casa da sua tia Preta, você podia dormir na casa da tia Maria, você podia dormir na casa de qualquer um. Você podia dormir na casa de seus primos, na casa da sua mãe, na casa da sua avó, na casa dos seus tios. Na hora de comer, se você estivesse em trânsito, no lugar que você estivesse, você podia comer ali. Não era estranho comer na casa de seus parentes, era em casa também. O dia nem bem-amanhecia a gente já estava aproveitando as primeiras luzes pra sair plantando, pegar boi, pegar cabrito, pegar cavalo, ir para o curral onde pessoas estavam tirando leite das vacas para beber leite na hora que tirava na caneca. E imitar os adultos agarrando aqueles boizinhos pequenos. Os homens grandes pegavam bois grandes, meninos pegavam bois pequenos. Então, juntava um monte de menino, um puxava o rabo do boi, o outro puxava a perna do boi e outro montava no bezerro e quebrava o braço, quebrava o pescoço, rachava a cabeça, quebrava a perna. Toda hora tinha um moleque arrebentado. Assim, doideira mesmo. E disparava num cavalo montado num cavalo sem nada. O cavalo em pelo, sem freio, sem nada. A gente tirava embira do mato, pegava a embira e ia aliciando o animal, capturava ele, enfiava aquele cabresto na boca dele, amarrava na boca dele uma embira feita de fibra de coisas do mato e um menino jogava o outro em cima do cavalo. Porque o menino não tinha altura para montar num cavalo. Então, ele jogava o outro em cima do cavalo, o cara se agarrava lá com aquela embira e o bicho saía voando com o moleque em cima. A possibilidade desse moleque se arrebentar debaixo de uma árvore, passando com o cavalo era imensa. A gente tinha que ter essas manhas. Pendurar num pau e deixar o cavalo ir embora ou meter a cara no pau e cair no chão, ou esperar o cavalo passar dentro d’água para você cair de cima dele dentro d’água. Se ele pegava uma grota daquelas e subia para uma pedreira daquela lá, fugindo com você, você tinha que encarar estas aventuras.

3.  O RIO DA MEMÓRIA

Entrevista
Originalmente publicada no site Museu da Pessoa, em 14 de março de 2008.

E você se lembra de quando era pequenininho, você podia descrever como era o lugar que você morava? Com quem você morava?
(continuação)
E é desse tempo a lembrança mais rica talvez que eu tenho guardado da convivência com o meu pai e da presença do meu pai e da minha mãe. Foi naquela grande aldeia dos meus primos, primas, tios, daquela parentalha toda. Porque a partir do que deve ter sido aí por meus 11, 12 anos de idade que a região que eu nasci, que meu pai, minha mãe, essa minha parentalha pôde viver em vida selvagem mais ou menos, começou a ser colonizada de uma maneira tão violenta que as últimas matas, as últimas árvores realmente frondosas que tinham na nossa região foram arrancadas em carretas. E eu me lembro que foi a primeira vez na minha vida que eu senti cheiro de diesel. E eu estranhava para caramba, eu achava muito ruim o cheiro de graxa e de diesel, porque o diesel era o combustível que os caminhões grandões que entravam para tirar nossa mata usavam. E era aquele calor, aquela poeira danada, aqueles caminhões passando levando a mata embora. E eu não tinha uma percepção dessa coisa de meio ambiente, desses trens assim mais complexos, mas eu sabia que aqueles caras estavam roubando alguma coisa impagável. Hoje eu sei que eles estavam acabando com o meio ambiente, eles estavam acabando com as nossas nascentes, com as nossas águas, com os pássaros, com os bichos que eu amo. Mas na minha inocência o que eu sentia é que aqueles caras eram desagradáveis, que eles fediam a diesel e graxa e aqueles caminhões eram barulhentos. Aí, com esta ocupação da nossa região por empreendedores, madeireiras, serrarias, colonos, criadores de gado, fazendas, nós saímos meios expulsos desta região. Foi quando a gente fez a nossa primeira migração e saímos. Meu pai, meus tios, meu avô, com uma renca de netos, sobrinhos e filhos, saíram de lá com uma intensão meio difusa de ir pro Paraná. A gente saiu achando que aquele montinho de gente ia atravessar Minas e ia até um lugar que era chamado de Paraná, porque na época tinha gente saindo de lá da nossa região indo pro Paraná, dizendo que o Paraná tinha floresta, tinha bicho, tinha muita fartura, tinha rio.

 

4.  O RIO DA MEMÓRIA

Entrevista
Originalmente publicada no site Museu da Pessoa, em 14 de março de 2008.

Quais foram os primeiros animais que você conheceu?

Acho que muita gente da minha geração que não nasceu nas cidades viveu estas aventuras. Eu nasci em 1953. O Brasil não era esta coisa urbana que a gente conhece hoje. Meu avô, minha mãe, minha turma toda teve a experiência da infância em contato com a natureza, com os ciclos da natureza. Com as tempestades com as chuvas, com chuvisco. A pedra que desce do céu arrebentando tudo. E com a natureza agindo sobre a nossa memória, sobre a nossa compreensão do mundo de uma maneira tão poderosa, que desde pequenininho a gente ia ganhando uma marcação forte do ritmo da natureza. Do tempo das águas, do tempo da seca, do tempo das enchentes, das inundações. Tanto que os meninos botavam fogo na lavoura, botava fogo no pasto, botava fogo no mato seco, porque os meninos sabiam que aquela época era época que a terra, o lugar onde eles viviam, estava seca. Por isso que eles botavam fogo, não era só uma sacanagem dos meninos. Nós nunca pensamos que estávamos fazendo qualquer coisa errada, a gente botava fogo no mato porque o mato estava seco e não tem melhor coisa que tacar fogo no mato quando ele está seco. Depois vem a chuva e depois vem a enchente. A gente tinha certeza que depois vinha a chuva. A gente tinha certeza que depois vinha a inundação, vinha enchente e tudo. Então a gente não se preocupava de botar fogo no mato. Hoje eu fico prestando a atenção, se o menino botar fogo no mato hoje, nossa será um inferno. O menino não pode mais botar fogo no mato, porque não tem mais mato. Acabaram com o mato todo. No meu empo tinha mato de uma geração, duas, três gerações. Essas coisas são formadoras da identidade, da cabeça da pessoa, do ser. Mudam tanto, e eu fico olhando para quando era menino. Agora que meu netinho Siã, que está com três anos, ou que meu filho Kremba que está com seis anos, o que eles experimentam em relação a liberdade? A liberdade de estar na natureza, de interagir, de mexer com as coisas da terra e de ter a impressão do mundo sobre eles? A natureza potente com chuva, com vento, com seca. Esse contato está sendo cada vez mais distante. E eu tenho o desejo que as crianças do mundo inteiro possam se chocar com a natureza, e não viverem separadas da natureza. Porque eu acho que enquanto a gente puder se chocar com a natureza, nós vamos continuar tendo memória dos antigos seres humanos, que são os nossos ancestrais.

 

5.  O RIO DA MEMÓRIA

Entrevista
Originalmente publicada no site Museu da Pessoa, em 14 de março de 2008.

Como é que foi sua experiência de aprender com as coisa? Você aprendia com quem?
Com a natureza principalmente. Eu estava falando desse negócio do choque da natureza, porque agora que eu já sou, é … Estou mais, digamos, crescidinho, e passei a enfrentar as situações novas, que eu tinha que responder essas situações, desafios do mundo dos adultos. Do trabalho, por exemplo. O quê que é o mundo do trabalho? O mundo do trabalho é uma escala grande daquilo que eu vivi com o meu choque com a natureza. Tudo que a natureza me ensinou me deu potência para resolver coisas agora que eu sou um camarada mais crescidinho. Quando eu era pequeno e andava com aqueles balaios, com aquelas peneiras, enfiando na beira d’água, subindo o igarapé, na beira d’água tinha vegetação que caí a e tampava a visão. Então, eu ia por ali batendo a peneira. Os meninos lá batendo pau e espantando os bichos. Dali daquelas beiradas de barranco a gente podia dar a sorte de pegar uma traíra bacanona, mas também podia sair uma cobra, uma sucuri, podia sair um bicho dali. Então a gente estava treinando nossa inteligência, a gente estava treinando nossa capacidade para lidar com complexidade, com desafio. Se viesse uma cobra a gente tinha que fazer alguma coisa, se viesse uma traíra a gente agarrava ela. E a gente ia com os pezinhos descalços. Porque eu devo ter usado mesmo um calçado destes que prende o pé só a partir de oito, 10 anos de idade. Antes disso eu andava com meu pé totalmente a vontade no chão. Até jovem, idade já de rapazinho, eu sempre tive a maior liberdade com meu pé. Não queria ficar prendendo ele. Nós, os meninos que cresceram comigo, cresciam com o pé livre. Pé livre, cabeça livre. A gente andava pisando na pedra, pisando no chão. A gente ia por dentro da água metendo o pé, assim, no fundo e a gente sabia que no fundo era de matéria orgânica que estava podre, de material que estava ali. Aquelas coisas que caiam de folha de mato. Ou se o chão era de areia ou uma laje de pedra. A gente ia pegando isso tudo de sensação. Era nosso pé que ia lendo o chão para a gente. A gente estava aprendendo. Então, nós aprendemos tateando. Tateando o mundo, tateando a terra. Sentindo o cheiro de mato, sentindo o cheiro dos bichos. Você ia enfiando aquele balaio, aquela coisa tão espontânea dos meninos, de enfiar a peneira dentro d’água, de jogar ela pra fora para tirar os bichos que se pescava, que se pegava.

Essas práticas todas eu sinto que uso hoje. Às vezes eu estou, sei lá, numa reunião, numa situação diferente na política, uma situação que eu tenho de representar minha família, o meu povo ou o movimento social que eu estou engajado, ou um interesse de um empreendimento que estou envolvido. E eu tenho que discutir com um camarada, um executivo de uma empresa, ou com um ministro, com um camarada do governo, seja quem for, mas ele tem um ponto de vista que é diferente do meu. Ali naquele momento que eu estou confrontando aquela situação o menino vem e me dá a mão. O menininho do balaio, da peneira, está lá. É aquele menininho sabido, que chega e fala: “Oh, passa a peneira assim, entendeu? Vira o balaio para lá. Dá um pulo para trás. Cai de cabeça.” Então eu tenho certeza que esses momentos que a gente pôde viver a verdadeira liberdade, onde a gente corria o risco, inclusive, de se matar, porque eu falei com vocês que alguns dos meninos morreram, foram importantes. Mas o maravilhoso disso, é que a gente estava tão pleno de vida que tudo quanto injeção que a gente pegou da vida ali pontencializou a gente, pra gente viver em qualquer lugar do mundo. Eu já fui pro Japão, eu já fui para Europa, para os EUA, já andei pela América Latina, já entrei em lugares que só doidão, que só guerrilha mesmo é que anda, já fui em reunião do Banco Mundial, no Congresso Americano, na ONU, na CIA e na KGB. Já andei nesses lugares todos e pra mim não tem importância nenhuma, porque o lugar mais bacana do mundo que eu já fui mesmo foi dentro daqueles córregos, passando peneira, enfiando balaio, andando em balaio no lombo de burro.

Então, a terra dá um imenso manual de vida para os meninos, ainda mais no comecinho da vida. Esse choque com a terra, com a natureza, é de alguma maneira uma antecipação desses adultos, dessas futuras  gerações de adultos, que eu fico pensando que serão diferentes dos antigos seres humanos que nós aprendemos a amar, que aprendemos a escutar as histórias. Eles corriam mais riscos, morriam mais,. Eles não eram tão garantidos. Você não tinha certeza nenhuma se o seu pai ficaria vivo até ver você grande. Se o seu avô estaria lá, velhinho. Agora nós estamos vivendo no mundo das certezas. Todo mundo põe tudo no seguro, e fica essa perspectiva totalmente neutra, sem choque com a vida, com a terra. Eu fui aprendendo coisa com muita gente no mundo inteiro e muito interessado em aprender as coisas dos outros. Para mim a coisa mais importante que tem, depois da natureza, do choque com a natureza, é o choque com o outro, com o outro ser humano. Quando menino era com os outros meninos, com as meninas, com os bichos. E quando eu fui crescendo era com outros seres, com os outros pensamentos.

 

6.  O RIO DA MEMÓRIA

Entrevista
Originalmente publicada no site Museu da Pessoa, em 14 de março de 2008.

Como é que foi sua experiência de aprender com as coisa? Você aprendia com quem?
(continuação)
Eu poderia descrever muitas outras coisas da minha infância, mas acho que o mais importante foi o que essas coisas deixaram para mim, como a minha alma traduziu aqueles eventos, O meu irmão, por exemplo, ganhou uma potrinha linda, e botou o nome dela de Natureza. A Natureza cresceu, ficou linda. Uma éguona bonita. Um dia ela estava comendo sabugo de milho, e eu vi que tinha um monte de palha embaixo de onde ela estava. Eu peguei uma vara e fui puxar as palhas, igual se puxa com rastelo. Ela deu um sinal para mim de que não tinha gostado daquilo, balançou o rabo, como se estivesse espantando mosquito. Mas eu passei a vara de novo, e ela não teve duvida, meteu um coice bem na boca do meu estômago. Ela tinha tanta força, era lindona, fortona. E eu era aquele sacizinho. Fiquei sem ar, sem nada. Queria saber se eu ia morrer ou não. Aí eu caí lá. Todo mundo foi me socorrer. Carregar, dar água e tudo. Mas um coice bem dado no estômago, por um animal com saúde, era bom para matar um moleque. Então o que eu aprendi? O que a minha alma capturou daquela Natureza tão linda? Que ela era minha amiga. Não é minha inimiga. Senão… É igual uma mãe, a mãe pega e dá no pé do ouvido do filho. Hoje não pode, o juizado de menor não deixa. A Natureza me deu um coice na boca do estômago e me ensinou muito mais que alguns anos de escola, de curso, de treinamento, de workshop, oficina e outras asneiras que você pode inventar. Com um coice ela me deu um grau, freou muita coisa minha, permitiu eu chegar vivo aos quase 54 anos de idade. Porque 29 de setembro é o meu aniversário. Eu vou completar 54 anos, e quanto mais eu consigo contactar a memória, eu ligo com os mais antigos, que são os que eu reverencio, que são as memórias dos nossos antepassados. E eu vou viajando e entranado nos mananciais de visões que nossos avôs, os nossos bisavôs, os nossos antepassados deixaram para a gente. Aí é muito legal. Porque o igarapé que aquele menino bate peneira está ligado com o rio de memória muito grande, que é o rio de memória que os mais velhos foram contando para a gente, compartilhando com a gente, ensinando. Os modelos, sabe? A resolução das coisas.

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